quinta-feira, 28 de março de 2013

A judicialização do processo legislativo

O equilíbrio entre os Poderes da República parece estar irremediavelmente rompido: não importa o que o Congresso Nacional decida, se o assunto for levado à alçada do Supremo Tribunal Federal, a decisão pode ser revertida, obstada, paralisada, anulada.
Washington Araújo (*)

Alguma coisa não vai bem na administração da justiça no Brasil. 
E não vai bem porque o equilíbrio entre os Poderes da República parece estar irremediavelmente rompido: não importa o que o Congresso Nacional decida, se o assunto for levado à alçada do Supremo Tribunal Federal, a decisão pode ser revertida, obstada, paralisada, anulada. É a judicialização do processo legislativo e não da política, essa ciência muitas vezes abstrata, sem nome e sem rosto. Acontece que o processo legislativo brasileiro não é abstrato, tem os nomes e os rostos de 81 senadores e 513 deputados federais.
Apesar de todo o arcabouço em que são criadas, debatidas e colocadas em votação as leis brasileiras, tanto no âmbito do Senado Federal quanto no da Câmara dos Deputados, ainda assim tem sido prática recorrente a subversão do devido processo legal: os parlamentares descontentes com decisões do Congresso, ou de uma ou outra das Casas Legislativas, podem simplesmente protocolar alguma ação de inconstitucionalidade no STF e, atuando assim, tocam o terror da insegurança jurídica, eivam de suspeição matéria lidimamente aprovada no Poder Legislativo, suspendem os efeitos da nova lei e extravasam nos meios de comunicação a posição deste e daquele magistrado da Suprema Corte, quase sempre gerando mais confusão e sobreposição de poderes, além de lançar as sementes da dúvida quanto à lisura do processo legislativo e a supremacia final e irrecorrível do Poder Judiciário.
O STF tem se autoinvestido de funções não previstas no Texto Constitucional de 1988: o de ser o Senado do Senado. Assim, como o Senado é também Câmara Revisora de matéria legislativa aprovada na Câmara dos Deputados, o Supremo Tribunal Federal vem atuando como órgão autônomo, que traz para si a decisão final sobre o mérito e também sobre a condução do processo legislativo em si. E a sanha para se imiscuir em temas que não são de sua alçada decisória parece não ter limites, não respeitando nem os ritos de legalidade e menos ainda a segurança do bom senso. 
É assim que o STF se acha investido do direito de cassar mandatos populares conquistados em pleitos democráticos, secretos e de universal sufrágio. É assim que o STF, para proteger um ou outro Estado da Federação produtor de petróleo, investe contra a decisão – que deveria ser soberana - do Congresso Nacional que nada mais fez que contemplar os interesses maiores da nação e não apenas os interesses nem sempre lídimos de uns poucos entes federados. Chama a atenção que a decisão monocrática de apenas um único ministro do Supremo possa suspender os efeitos de uma lei aprovada em tese por nada menos que 81 senadores e 513 deputados federais. E há abusos sempre que uma esfera desconhece ostensivamente a existência de outra esfera de poder. É nesse lago de águas paradas que viceja os autoritarismos e se torna combalida a segurança jurídica, social e política que toda sociedade moderna deve, a todo custo, preservar e manter.
Causa espécie constatar que pelo andar da carruagem a Procuradoria-Geral da República, os Ministérios Públicos e agora com maior intensidade a própria Suprema Corte de Justiça tem sido instrumentalizados por partidos políticos de fato, mas não de direito, esposando e defendendo ideologias que absolutamente não refletem o pensamento da maioria dos que integram a sociedade brasileira, uma vez que nem o PGR, nem os MPs e nem o STF receberam qualquer mandato eletivo outorgado nas urnas pelo povo brasileiro. Ao contrário, são escolhidos e nomeados por autoridades lidimamente eleitas pelo povo. Esse mesmo povo que, pode muito bem olhar com séria desconfiança, tão tacanha inversão do estado de direito: os nomeados podem destituir os eleitos.
Há que se pensar em outros aspectos. Por qual critério podemos dar relevo a decisão de 1 ou de 11 juízes do STF em contraposição a decisão tomada por maioria em um universo de 594 parlamentares? Se é para desqualificar o processo legislativo atual, porque deveríamos imaginar que decisões do judiciário seriam consideradas mais sábias, pertinentes e mais alinhadas com o bem-estar da Nação? Não aprendemos ainda que sempre que a vida política de um povo é desqualificada abre-se perigosos atalhos para a supressão dos direitos e das liberdades civis, e tem início marcha batida para o estabelecimento de tiranias e ditaduras? E com estas, todo o império do arbítrio, incluindo-se a violação dos direitos fundamentais da pessoa humana e a instrumentalização da tortura como aceitável na consecução de seus objetivos de poder?
Com julgamento da AP-470, o escândalo de estimação da grande mídia nacional, carinhosamente por esta alcunhada ‘mensalão”, vimos que os debates mantidos no STF diferem muito pouco em relação aos debates realizados no Congresso Nacional. Em um e em outro, as paixões humanas assomam; as vaidades se encapelam; os interesses nem sempre confessáveis afloram. Em comum a estes ambientes, apenas o uso de fingida cordialidade. É quando se pode ouvir que “Vossa Excelência proferiu uma rematada asneira” ou “Vossa Excelência está acostumada aos seus jagunços do Mato Grosso” ou ainda “Vossa Excelência só deseja os holofotes da mídia”. No mais, são esferas distintas, porque tiveram ritos de passagem diferentes. Em uma esfera é o poder outorgado pela população que pontifica, em outra é (ou deveria ser) o notório saber jurídico que impera (ou ao menos deveria imperar).
A questão da distribuição dos lucros financeiros advindos com os os chamados “royalties do petróleo” agudiza a artificialidade da crise com que nos defrontamos. Não é nem da alçada nem da competência do Supremo Tribunal Federal exarar decisão final sobre o assunto. Assim como não é competência do Congresso Nacional decidir pela composição do Conselho Nacional de Justiça ou julgar desembargadores flagrados como protagonistas e beneficiários em um possível ‘mercado’ de sentenças judiciais.
Aos observadores da cena urbana cabe chamar a atenção para as gritantes diferenças entre o que é opinião pública e o que é opinião publicada. Mas, sobre este clamoroso tema, voltaremos a tratar oportunamente. Adiantamos apenas que magistrados, em especial, deveriam estar bem cientes que opinião pública é esfera muito melhor representada pelos representantes eleitos pelo povo. E opinião publicada é o que integra editoriais e colunas de jornais e revistas, que fazem parte da escalada de assuntos dos telejornais diários e que embasam nas emissoras de rádio os Oráculos de Delfos, estes nossos sapientes e sempre erráticos, comentaristas de política.
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(*) Washington Araújo é jornalista e escritor. Mestre em Comunicação pela UNB, tem livros sobre mídia, direitos humanos e ética publicados no Brasil, Argentina, Espanha, México. Tem o blog http://www.cidadaodomundo.org
Email - wlaraujo9@gmail.com

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